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20 de fevereiro de 2018

[Conto] Thrummaz - o Rei Anão - Parte I


Mesmo após quase duas semanas de cativeiro, algemado de pé rente ao muro, o porte majestoso daquele anão ainda se mantinha. Vestia um trapo na cintura cobrindo sua virilha, meio que uma tentativa de "pudor" dos cativos. Talvez, mesmo no meio dos orcs, havia alguma reverência ao veterano combatente, ao Rei dos Anões.

Thrummaz de Tyrum, que regia quando Tyrum ainda ostentava bandeiras e glórias da batalha que levou ao que chamamos de “Nova Era”, sabia dos riscos, mas achou que sua presença poderia ser um fator definitivo na negociação. Mas os orcs viram a oportunidade e não hesitaram. A guarda pessoal do rei era composta de cento e cinquenta guerreiros, mas foi emboscado por cinco vezes esse número. Somente o rei e o príncipe foram poupados, embora as perdas dos orcs tenham sido consideráveis.

O Rei Anão estava sujo, mas não ferido. Seu vigor racial e sua moral talhada por meia-vida anã de lutas e treinamento o garantiriam quase que indefinidamente. Sua barba rala começava a ficar espessa, e isso o incomodava moralmente quase tanto quanto as ausências de Elger, seu filho, que o acompanhou.

Após duas horas, um orc aparecia. Já o tinha visto antes... Era menos bruto que o normal, mas considerando seus adornos metálicos deveria ter algum status entre os demais. Talvez fosse de alguma "nobreza", ou pelo menos mais vaidoso que os guerreiros com suas cicatrizes, partes do corpo faltando, ou adornos de peças ressecadas de suas vítimas.

Ele abre a jaula, prende uma corrente à canela do príncipe, e fecha a porta.

O rei analisa seu filho. Escoriações de golpes contundentes. Era de certa forma um alívio que os orcs não possuíam práticas de torturas, pois o príncipe Elger, segundo filho da Casa de Tyrum, era jovem e forte. Estaria novo em folha até o fim da tarde.

- Eles arrancaram um dente meu. - Fala o príncipe. - Deve ser para enviar como prova que estamos aqui e vivos.

- Tolos. - Ri o rei. - Eles enviaram um item para nos rastrearem. Precisamos resistir um pouco mais, meu filho.

 Talvez no seu íntimo Elger esperasse que seu pai demonstrasse mais preocupação por suas torturas diárias, e o fato de não torturarem o rei fazia o jovem anão ficar preso num paradoxo emocional entre o alívio e a inveja. Era humilhante estar impotente entre aquelas bestas. O príncipe chegava a salivar pensando na possibilidade de massacrar cada um daquelas criaturas. Mas o experiente pai disse que uma oportunidade seria rara, e não poderia ser desperdiçada.

 O Rei, contudo, ponderava. Preferiam que tentassem o torturar. Ou ao menos viessem zombar dele, para ele tentar negociar e mesmo fracassando entender qual a posição de seus captores. Precisava do artefato que o levou à tribo de Odnenga, escondida na secção oeste da Cordilheira do Ouro, território do Império Áureo. Precisava ocultar sua jornada pessoal para não levantar questionamento dos aurianos ou mesmo de Lyon. Jamais provocaria incidentes tão desconfortáveis se o artefato não fosse tão importante.

 Foram dois anos de negociações secretas. Presentes de valores obscenos enviados. Enfim, a visita de um rei deveria reafirmar a boa-vontade de Tyrum com seus inimigos ancestrais, mas não estavam tratando com seres honrados, nem mesmo negociadores competentes.

 Os cativos, rei e príncipe, preparavam-se para um décimo terceiro dia tedioso - em uma hora chegaria a sopa imunda, que o príncipe tomaria uma parte e alimentaria o pai amarrado com o resto, dormir como pudesse, e novamente a tortura com os primeiros raios do sol da manhã - quando algo mudou a rotina. Barulho por toda a caverna que os orcs usavam como prisão. Cheiro de fumaça e sangue no ar. Era uma batalha.

 O mesmo orc vaidoso de antes corre caverna adentro, com uma faca enferrujada nas mãos. Ele berrava algo em seu idioma, e destrambelhadamente tentava desenrolar um molho de chaves amarrado em uma pele que fazia vezes de uma toalha de mesa.

 Pai e filho acenaram, instintivamente, reafirmando sua cumplicidade e preparo para a próxima ação.

 Ignorando isso, o orc apressa-se à jaula. Estende a faca para o príncipe Elger e com a mão esquerda destrancava a porta da jaula.

"Canhoto!" - Observou Thrummaz mentalmente.

 A criatura então adiantou-se contra o príncipe. Este, depois de dias de relativa submissão, projetou-se em um encontrão no limite que podia com a corrente em sua perna. O orc cambaleou para o fundo da cela.

 Thrummaz usou as correntes para içar-se a altura suficiente para que com suas pernas envolvessem o pescoço do orc em uma chave. Ao mesmo tempo que sufocava a criatura, agarrou a mão esquerda da criatura com a sua própria e com a direita apertava o excesso de corrente reforçando a captura. O orc estava com a mão direita livre e com uma faca, mas não conseguia ângulo para esfaquear o rei com a mão inábil.

 Sabendo que a diferença de força entre o rei e o monstro impedia que tal manobra se sustentasse, Thrummaz concentrou-se em arrancar o molho de chaves da mão do orc. Ele torceu e mordeu, e enfim, o molho escapuliu. Com um ousado lance, o molho pousou nas mãos do príncipe Elger, que por dias estudava aquelas chaves e sabia exatamente qual livraria sua perna.

 Urros vinham do interior da caverna. Algum reforço ou patrulha se aproximava. Podia ser um caminho para o subterrâneo, ou uma guarnição reserva. Era um fato desconhecido e que aumentava a urgência dos anões para a fuga.

Elger tomou com facilidade a arma do orc. Mesmo enfraquecido pelas semanas de cativeiro, percebia em combate que era superior ao seu captor, e triunfaria mesmo sem a imobilização providenciada por seu pai. Mesmo querendo terminar a vida da criatura, o príncipe se conteve a tirá-lo de combate para libertar seu pai. Precisariam lutar para sobreviver, e o tempo era incerto.

 Os urros dos orcs vindos do interior da caverna aumentavam gradualmente, mas logo foram abafados pelo urro de um único anão.

 Rei e príncipe só viram um borrão. Era um anão de cabelos e barbas castanhas e longas, com armadura pesada, um martelo de pedra rúnica em uma mão, um enorme escudo torre na outra. Não reconheceram flâmbulas ou cores nesse guerreiro intruso. Ele partiu como uma fera furiosa, mas assentou num gargalo da caverna. Enterrou com força sobrenatural o enorme escudo quase tão alto quanto ele mesmo à sua esquerda, e tomou para si o pouco espaço á direita que restava. O rei reconheceu a Postura dos Defensores de Dol'oan.... Aquele guerreiro não arredaria o pé daquele lugar, e ai de quem tentasse passar...

 Por cima da cabeça do anão, um virote de Besta passou na direção dos orcs, minguando quem avançasse contra o defensor. Um segundo anão se aproximava dos cativos. Este, Thrummaz e Elger reconheceram logo.

- Volthrur! - Comemorou com alívio o príncipe. - Que a Forjadora o abençoe!

 Volthrur era o capitão da Khro Rym, guarnição de elite das forças miliciais de Tyrun. Seus quarenta soldados eram tão bem treinados que não havia dúvida ao regente que triunfariam onde os cento e cinquenta da Guarda Pessoal fracassou.

- Que a forjadora abençoe o Rei e o Príncipe! - Responde o capitão. - Ajude-nos, Mestre Castelão!

 Aquela alcunha surpreendeu o rei mais que a emboscada dos orcs. Além do misterioso guerreiro que sozinho interrompeu o avanço dos orcs interioranos, outros dois anões acompanhavam o capitão da Khro Rym. Este recém-chamado, possuía um porte majestoso que rivalizaria com o próprio Thrummaz... E que seria o último que imaginaria agindo em seu benefício.

- Belkarl do Machado Anão - o rei fala com espanto palpável. - O que ... quem solicitou seu apoio?

 O Mestre Castelão era o líder dos Anões do Escudo. Aquilo explicava o Defensor de Dol'oan que irrompeu a caverna. Mas os Anões Escudos deram as costas a Tyrun faziam décadas, rejeitando as determinações raciais e religiosas dos herdeiros de Forjia. Belkarl deixa um hiato de silêncio. Talvez gostasse de deixar o rival pensando no preço daquele apoio inusitado. Mas o Mestre Castelão deixa de lado a rixa.

- Seu filho mais velho e seu capitão não fizeram nada que você precise se envergonhar, majestade. Seu cativeiro é sigilo ainda aos olhos do mundo. - Fala enfim. - Só os orcs não souberam guardar segredo dos guardiões das Torres das Armas a quais eu sou regente. Decidi interceptar Khro Rym e guia-los pelas montanhas mais propriamente.

- Sua armada está aqui? - Pergunta o príncipe.

- Não. O Forte das Armas não trata com Tyrum. - Belkarl dá espaço para que Volthrur entregasse cobertas para os dois nobres cativos. - Eu fui "voluntário". Não é sempre que você participa de uma campanha para salvar um rei. Mas trouxe comigo meus dois melhores guerreiros...

- Eu conheço ele... - Elger aponta para o guardião com escudo, que retornava de sua posição no interior da caverna, embora ainda não reconhecesse o martelo negro como heráldica. Era visivelmente um guerreiro anão testado em combate, com longas barbas que mostrava despresar a Ordem do Luto, e que triunfou sobre os monstros das cavernas com a ajuda da Besta Pesada em poder de Volthrur a superar sua muralha de aço e carne. - É Therin Dueguir do Clã Mercenário!

- Therin da Torre do Martelo hoje. Líder da Torre do Martelo. - Corrige o Mestre Castelão, reforçando que aliciara aquele grande campeão para sua facção. - ... E este é o Paladino Bufir da Torre do Martelo, filho de Therin.

 O jovem anão, terceiro daquele grupo avançado, portava uma maça mas trazia a mesma flâmbula e um martelo de batalha preso ás costas. Ele se ocupava até então com a entrada da caverna enquanto seu pai e os outros dois asseguravam o domínio do calabouço. Mas com o triunfo, aproximava-se do regente, com um brilho sagrado nas mãos.

- Não necessito de cura. - Fala o orgulhoso rei, reconhecendo o Poder restaurador. - E o príncipe de Tyrun também não requer nada a não ser uma arma e um escudo. Assim como eu.

- Será uma honra, Alteza. Majestade. - Fala o capitão com um aceno reverencial. - Quais as ordens? Recuo ou subjugar os inimigos?

- Meu rei... - fala o Príncipe. - Essas criaturas ousaram nos aprisionar! Devem pagar com seu sangue!

- Essas vinganças não são o costume de Tyrun... - Belkarl comenta com certa ironia na voz.

- Não... não o é. - Thrummaz concorda, mas avalia que aquele ataque covarde podia ser interpretado como fraqueza para os anões. Também tinha o fato de uma operação como aquela não-autorizada pelo Império Áureo, perguntas do trono de Lyon as quais não queria responder, e o segredo do artefato. Belkarl mesmo demonstrou que aquela tribo deveria ser silenciada. - Mas é o que faremos. Capitão Volthrur, nenhum orc adulto deve sair vivo desta montanha.

(...)

 A elite Khro Rym tinha força e treinamento para suplantar aquela tribo marcial, especialmente porque os orcs jamais se recuperaram completamente do confronto com a Guarda Pessoal do Rei. Mas guiados pelos três anões escudos que conheciam melhor aquelas montanhas, seu ataque foi devastador. Quando o rei surgiu e juntou-se à batalha, aqueles 45 soldados passaram a lutar como se fossem mil.

 Não houve baixa por parte do Khro Rym. As barracas da superfície da tribo foram incineradas. Os totens da tribo derrubados e destruídos. Os Odnenga foram condenados a serem esquecidos da história.

 E seu tesouro, deveriam ser saqueado.

- Por aqui... eu já estive lá. - O príncipe Elger guiava o rei e o capitão. Eles tentaram desestimular que o Mestre Castelão os seguissem. Apesar de ele alegar não querer recompensa, sua insistência em ver o prêmio era impossível de dissuadir.

- Eu soube que o príncipe fez os primeiros contatos... - comenta Volthrur. - Chegou a vir ao cofre das criaturas antes da captura?

- Sim... eu e seu filho, Ythrun negociávamos antes da traição. - Confirma o príncipe. - Sinto que ele não tenha sobrevivido.

- Ele está com Othen agora. Orgulhe-se. - fala Belkarl. Os anões escudos não se entristeciam com a perda de heróis em combate.

- Ainda assim, pais enterrarem filhos é um evento de pesar e respeito. - O rei Thrummaz perdia a paciência com aquela aliança, e nenhuma gratidão poderia atenuar a falta de respeito daquele proscrito.

- Só estou comentando. Eu só tenho admiração por um soldado leal que deu a vida pela sua família real... - comenta sem muita mudança de tom.

- Perdão, majestade... - O capitão Volthrur manifesta-se com respeito. - Mas eu concordo com o Mestre Castelão. Carrego tristeza sim, mas orgulho da coragem de meu filho.

 O rei media em silêncio se aquelas palavras eram mesmo verdade ou se seu capitão tentava a diplomacia entre dois que clamavam a regência do povo robusto.

- Aqui... chegamos.

Era uma alcova mais larga, iluminada com dispensáveis tochas, com um par de baús simplesmente largados no chão, transbordando peças de metais preciosos, alguns dos presentes que os orcs receberam nas primeiras negociações, e a estátua.

 Era uma estátua de anã anciã, com roupas antiquadas, e face severa. Ela usava o Malho curto pesado, símbolo das sacerdotisas de Hannah. O material que compunha a estátua era cinza com tons de roxo. A base possuía runas com discreta luminescência púrpura.

- Este é o artefato. - Anuncia o príncipe. - Como aquele bardo élfico falou.

O Rei Thrummaz ajoelha-se até a base e estuda com cuidado aquelas inscrições.

- Tudo isso por uma estátua de pedra semipreciosa? - Resmunga o Mestre Castelão.

- Caro mestre Belkarl... - O rei fala com um tom de humor na voz. - Já viu trabalho de escultor tão perfeito assim?

 O Anão guerreiro decide prestar melhor atenção. Ele reconhece detalhes intrigantes. Primeiro, a diferença visível da textura da pele, da arma e do tecido. Depois detalhes ultrarealísticos das rugas e bolsões dos olhos. Mesmo alguns fios de cabelo imperfeitamente penteados destacavam-se da cabeleira da "obra".

- Esta é uma criatura petrificada?!? - Espanta-se Belkarl. - Quem é ela?

- Ynahum Thyrin. Malho de cobre. Minha tia-avó de quarto grau... E última sacerdotisa de Hannah. - O Rei Thrummaz levanta-se e encara Belkarl. - Ela foi designada antes do sacrifício da deusa a guardar informações pessoais da própria Forjadora. Ela se escondeu por cem anos até que dissidentes dos magos a encontraram e aprisionaram nesta forma que você vê.

 Belkarl demonstra em seu semblante duro e desafiador uma mudança surpreendente. Um pesar respeitoso pela figura histórica. Mesmo assim, alfineta.

- Sabe que os orcs pediram Resgate por você e seu segundo filho, não? - Comenta. - Orcs da época de nossa juventude, com as mãos em um rei anão, o estraçalharia no ato. Usaria seu crânio como adorno e suas barbas como tecido. Até os Orcs mudaram com o novo mundo.

- ... E você está achando que deveríamos fazer o mesmo? - Interrompe iradamente o príncipe Elger. - Esquecer a Forjadora? Nosso voto? Se entregar nossa honra da mesma forma como o senhor...

- Chega, Elger. - Repreende o rei anão antes que o príncipe passasse dos limites do respeito.

- Admito que tinha conceitos errados da força de Tyrun. - Fala o Mestre Castelão. - Eu vi com satisfação Khro Rym em combate. Tal qual seu capitão, seu rei... E seu príncipe. - O Mestre castelão, combatente mais experiente, faz da aprovação uma indulgência ao jovem com a pausa desnecessária. - Sei que a Malho de Cobre pode trazer a história gloriosa de uma época em que éramos um povo só e enfrentamos o que julgavam uma guerra perdida. Mas sua tia-avó não viu o desfecho da batalha. Não acredito que possa indicar a Forjadora... Ainda mais dependendo de quantos séculos ela ficou presa como uma estátua.

- O que sugere o Mestre Castelão do Forte das Armas? - O rei fala com ironia.

- Você sabe o que eu sugiro! - Belkarl perde a compostura por um segundo. - Que trate a queda da Deusa como um momento de glória. Do sangue e da fé dos anões que foram usados para estocar o coração do deus lunático!

- Hannah deu mais que sua alma, Belkarl. - Thrummaz de Tyrun tivera aquela mesma discussão com adoradores de Othen por quase toda a sua regência. Estava estafado de sempre lembrar isso. - A Deusa não está nos Campos de Guerra de Othen, como deveria ser o destino daqueles que conseguem a glória na batalha. Ela ficou em Meliny, e aguarda que nós a encontremos!

- Não comemore sua morte, comemore sua vida! - Retruca uma última vez o Mestre Castelão. Mas enfim, dá as costas e prepara-se para partir. Conforme afirmou, não queria tesouros ou sequer agradecimento por sua colaboração no resgate do rei. Mesmo não sendo mais súdito, jamais deixaria a nobreza anã nas mãos de orcs.

Mas talvez, se um dos dois regentes não fosse tão orgulhoso, perceberia que o Mestre Castelão almejava ser uma única família outra vez.

Os passos pesados de Belkarl ecoavam pelas cavernas desertas. Três ficaram ante o Artefato, os tesouros anões recuperados, e o excedente de Odnenga. A guarda Khro Rym deveria fazer as vezes da guarda pessoal do rei, e ainda guiar aquele saque pelas montanhas, em segredo do império e de Lyon, até o trono de Tyrun ou alguma casa aliada.

Mas aos comandantes da empreitada, a próxima etapa os incomodava: Seria a quebra da maldição que aprisionava Ynahum Thyrin, Malho de cobre, a última serviçal pessoal da Deusa dos Anões...

E as runas deixavam claro: Precisariam de magia anã Niebelunga.

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